sexta-feira, junho 17, 2005

Falemos um pouco sobre a avozinha...

Estava aqui a indagar sobre qual o primeiro tema a escolher para expor aqui no blog, por entre a míriade de conhecimentos adquiridos ao longo de todos estes anos pela convivência com a minha avozinha, quando me dei conta que o melhor mesmo era para dar-vos a conhecê-la.
Comecei a pensar nela e deu-me logo a volta ao estômago, só de me lembrar de um desses saudosos dias sentado à lareira com ela, se bem que ela não tinha mesmo uma lareira. Ela limitava-se a acender uma fogueira no meio da sala e abria as janelas do seu apartamento no quinto andar, e assim todos os netinhos se podiam sentar em redor da mesma, o que no caso de uma lareira real é impraticável.
Uma altura até lhe cheguei a perguntar se aquilo não era perigoso, quando vi o pé do Filipe a arder, e o fogo a alastrar para os cortinados, ao que ela me respondeu calmamente na sua voz fanhosa e meia cuspida, pois não tinha dentes, que perigoso era saltar à corda descalço em cima de cacos de vidro num chão borrifado com álcool, para quem não tivesse uma técnica suficientemente desenvolvida. Com tal argumento, decidi calar-me, inspirar aquele cheiro rançoso das tábuas do soalho a arder, enquanto ela batia com a vassoura de palha ora no pé do Filipe, ora no cortinado, para apagar as chamas, e esperar por uma história qualquer onde ela continuaria a demonstrar-nos todo o seu saber milenar, se bem que ela na altura tinha apenas setenta anos.
Nesse mesmo dia ela surpreendeu-nos a todos com algo que jamais me esquecerei até hoje, embora agora não esteja a ver bem o que foi.
Ela falava sobre qualquer assunto sem qualquer pudor ou embaraço e expunha perante aquele esfaimado grupo de crianças (sim ela nunca nos dava de comer durante o tempo que passávamos em casa dela, e reparem que chegamos a ficar com ela semanas inteiras), com os olhos a brilhar, esperando no lugar de um qualquer pedaço de broa bolorenta e dura, mais uma pérola do seu vasto conhecimento sobre o mundo e todas as coisas à sua face, bem como no seu interior e até mesmo, reparem, do infindável universo, que ela um dia nos explicou ficar apenas a dois quarteirões do seu apartamento.
Num outro dia, para nos espantar, enaltecer e mesmo deixar enrubescidos e alguns mesmo entumecidos (o Miguel e o Patrício) decidiu falar de algo cujo conteúdo era considerado adulto e por conseguinte inadequado a crianças de tão tenra idade.
Começou como sempre, entreabriu os seus lábios encarquilhados e cheios de herpes e perguntou:
Algum de vocês sabe, qual a importância da forma de reprodução das formigas do Kilimanjaro para o desenvolvimento da economia dos Cárpatos?
Quando acabei de ouvir tal questão foi como se o mundo se tivesse abatido sobre mim, e lembrei-me da altura em que eu quis ver esse programa na televisão e a minha mãe me pôs de castigo a ver os teletubies todos os dias durante um ano, e saiu logo de seguida de casa a correr para a igreja a chorar e acabou atropelada porque não conseguiu ver a bicicleta do Ti Manel que se aproximava a grande velocidade. Tudo ficou bem, apesar do meu pai ainda estar a pagar até hoje o concerto do muro onde eles e a bicicleta acabaram por chocar.
Mas a minha avozinha não, não se fez rogada pois achava que nós devíamos conhecer esses assuntos que nos preparariam para uma vida futura com todos os predicados necessários.
A minha avó era uma mistura de pescador com monge tibetano, pois na maioria das vezes não percebíamos bem o que ela queria dizer com algumas coisas, tal a sabedoria imbuída no seu discurso, bem como a voz grossa do catarro provocado pelos imensos charutos e Kentucks que fumava, já para não falar do tabaco que mascava incessantemente com as suas gengivas esverdeadas, e também por causa do mau cheiro e da calvice de que começava a padecer.
Ela falava inglês e outras línguas também, pelo menos, era o que nos parecia ouvir, quando a língua meia roxa, meia azul aparecia fora da boca e ficava pendurada num canto a pingar baba, e o cuspe voava até à cara dos netos no lado oposto da fogueira e ás vezes mesmo aos que estavam ao lado, e que os mais novos não conseguiam decifrar, mas que para os mais crescidos como eu já faziam todo o sentido, como sendo coisas importantes tipo: “May the force be with you”, ou “The Philadelphia experience was successfull”, “Einstein was an asshole”, “Marie Curie est trés jolie”, e podia quase dizer que a ouvi falar alemão, se quando o fez, ela não tivesse uma batata quente na boca, o que me impede de afirmá-lo, embora “achtung” e “scheisser” me parecessem claramente audíveis no seu pomposo discurso. Mas enganam-se aqueles que pensam que ela nos traduzia tais frases, mais uma vez a sua astúcia se sobrepunha, enquanto revirava aqueles olhos vesgos e vidrados como quem diz: “quem percebeu, percebeu, quem não percebeu que descubra por si.” E era assim o caminho para a sabedoria segundo a avó.
Aprendi com ela os malefícios do álcool quando nos demonstrou pessoalmente que beber um garrafão de tinto “de penálti” podia deixar-nos completamente inconscientes. E assim, uma vez mais, sem qualquer vergonha ou pudor, após o último gole ficou ali estendida de pernas abertas no meio do chão a verem-se os culotes. Eu sei que ela estava a fingir para impressionar os mais novos, mas ninguém fingia tão bem como ela, pois conseguiu ficar assim imóvel um dia inteiro sem se esquecer depois de falsear uma tremenda ressaca e a perda de memória do sucedido. Deviam ter visto: simplesmente fantástico! Nem a Meryl Streep o faria tão bem sem efeitos especiais de Hollywood.
Mas isto é a parte da diversão, “jogos com as crianças” como ela explicava alegremente aos nossos pais quando estes nos iam buscar a sua casa.
A parte do conhecimento era bem mais interessante, como a vez em que ela nos explicou a verdade por trás de assuntos como a teoria da relatividade, mecânica quântica, extra-terrestres, preconizando até a existência da série o sexo e a cidade, bem como inspirou outros primos nossos na criação de filmes baseados em histórias verídicas como o Mátrix e As Pontes de Madison County, entre muitos outros.
Bons tempos, é verdade…
Não tínhamos televisão nem dinheiro para ir ao cinema ou comprar livros de BD, nem sequer sonhar com jogos de computador, mas tínhamos a avó, que apesar de não ter dentes, só dizia coisas importantes.
Para não vos maçar, vou terminar por aqui esta apresentação que serviu apenas para ficarem com a ideia (vaga, é verdade) do esplendor desta maravilhosa criatura.
Mais pormenores serão acrescentados ao longo do tempo, quer por mim quer pelos seus outros netos que se juntaram a mim na criação deste blog em sua memória, pois ela infelizmente, já não se encontra entre nós…
Partiu o ano passado no expresso para visitar uns parentes afastados, muito afastados mesmo, penso que na galáxia de Andrómeda ou Cassiopeia, mas mesmo assim vai enviando uns emails e já a cheguei a encontrar on-line num chat onde ainda trocamos umas impressões sobre os conteúdos que podem ser aqui publicados, ou sejam, os que não a afectem pessoalmente, coisas tipo onde ficam as minas de Salomão e a identidade secreta do Batman.
Paulo
Para já deixo-vos, e como costumava dizer a avozinha e como me lembra o Jaime: "que a força vos guie, ou alguém vos empurre, para temos a certeza que caem..."

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