segunda-feira, dezembro 12, 2005

Natal Espirituoso

Como sempre se repete todos os anos, eis que chega a época de alegria e de mais umas descobertas macabras. A época Natalícia que é quando se mata o Bacalhau e se demolha o Peru. Nós, os netinhos, apresentamos para todos vocês o que era o Natal, nos tempos da avó.
- Queres começar Filipe?
- zzzzzzzzzzzzzZZZZZZZZZZZZZZZZZZZzzzzzzzzzz
- Bem, adormeceu, que tal começares tu Jaime?
- Vamos lá então antes que o Natal passe e nós sem história para contar. A avó tinha-nos sempre habituado ao seu já famoso peru recheado com os miúdos. Mas a verdade é que já não era a mesma coisa. Já não havia muitos miúdos pelo bairro. Desde aqueles dois pirralhos que resolveram cruzar-se na porta da avó, uns tais de Hanselmo e Grettela, que tem sido difícil encontrar um bom recheio. Mas se bem que graças às migalhas que os putos deixaram ela inventou o Bacalhau com Broa. Mas mesmo assim, a dita receita não deixou de ser um manjar dos deuses. Ainda por cima, a avó tinha uma maneira peculiar de fazer os seus cozinhados. Para não falar no seu caldeirão e a sua enorme colher de pau. Ela conseguia rechear o peru, como nunca vi até hoje. É certo que se o matasse primeiro seria bem mais fácil. Mas acredito que lhe tiraria o gozo todo ao seu desporto. Ainda me lembro, como se fosse ontem, daquelas grandes olheiras arregaladas de entusiasmo ao praticar tal ritual.
Depois era a hora da matança do bacalhau. Lá íamos nós para o tanquesito à sua procura. Não se devia tratar de um animal muito inteligente, era facilmente distinguível pela sua barbatana. Não devia ter muito sucesso no seu habitat. Fraco disfarce.
Mas lembras-te Paulo? A melhor parte era ver a avó pegar no seu bataran…, quero dizer, no seu batarpão e ZÁS… em cheio na tua perna, e como tu berravas:
- Aaahhh… fo#$%... dor… me&#$, … muita dor avó…, acho que vou desma…
- Está quieto ou só comes em sonhos. – Respondia ela. - Deixa a avó apanhar o peixe. Não se preocupem netinhos, é sempre preciso um bom chamariz para o bacalhau. E não há nada melhor que sangue fresquinho para o atrair!
Só me lembro dos teus olhos, Paulo, a revirarem-se todos e de ver-te cair para o lado. Tinhas sorte em cair para o lado certo, se não batidas com a cabeça no chão. Ao menos sempre caías na água, onde era mais mole. Uma coisa era certa, o método de caça era infalível. Dizia ela com o seu ar muito prazenteiro, a babar-se toda como um bebé, “Assim é que se apanham dois coelhos numa batarda só…”.
E lá íamos nós para a cozinha com a avó, depois de tão atribulada tarde. A fome já batia à porta. O Filipe ía ver sempre, e como tal levava uma castanhada, da avó, na cabeça. Tinha sorte, pois era o que tinha entretanto à mão. Se fosse um bocado mais tarde levava com o cutelo para aprender. “Ai…, menino mau comportado! Quem mandou abrir a porta? Ainda por cima traz uma corrente fria. Leva já a corrente para fora de casa. Não quero ver bricabraques desses à mesa.”
Devia ter saudades do Robim, pois de vez em quando andava com a corrente que o levava a passear.
- Mas lembras-te Jaime? A Pamela gostava muito era do bacalhau na pipa. Lá virava ela a pipa, enfiava o bacalhau e pronto, ficava toda contente até se lhe vinha um sorriso de contentamento, e era assim a época de Natal toda. O Filipe desde que provou o bacalhau da Pamela nunca mais quis outra coisa, dizia que o peru da avó nem perto lhe chegava, não era tão tenrinho, nem tão bom aspecto tinha. Dizia mesmo que o bacalhau da Pamela era mais suculento.
Mas no final toda a gente repartia e ficava satisfeita com o Perú da Avó e o Bacalhau da Pamela, mas se não chegasse, comia-se com o Tommy Lee, e havia quem gostasse, e até dissesse que o Tommy Lee tinha um sabor especial nessa época, embora o preferissem bem regado com azeite.
E por falar em Tommy Lee, lembro-me também das rabanadas da avó. Era cada uma… KAPOWWWW!
O Natal com a avó era sempre uma ocasião em que coisas fantásticas aconteciam. O Pai Natal descia pela chaminé e deixava prendinhas, embora na realidade não houvesse chaminé, e sim o tubo do ar condicionado, onde ele ficava entalado muitas vezes.
A avó contava muita vez, basicamente todos os Natais, que esta tradição começara quando o seu amigo Nicolau, que era muito rico, decidira pela primeira vez, ainda ela era menina e moça, estamos a falar mais ou menos do Século III, distribuir prendas. Tudo começou com as filhas do vizinho do lado, que ele sabia serem bastante necessitadas, e ele atento a esse facto, entrou-lhes pelas traseiras e deu-lhes.
Mais tarde decidiu distribuir por todas as pessoas da cidade. Para não ser reconhecido, disfarçava-se, vestindo-se de verde, e com grandes barbas, na altura ainda não tinha assinado com aquela empresa que vende coca com cola (vá-se lá saber porquê) e portanto ainda não vestia de vermelho.
Com a expansão do negócio, fez-se à rua pedindo ajuda à avó para puxar o seu trenó, disfarçada de veado. Fazia tanto frio que a avó ficou com o nariz tão vermelho que brilhava de tal forma que parecia quase uma lâmpada. Na altura os populares apelidaram-na de Rudolphius, não sei se era pelo bigode farfalhudo que ela usava, ou porque lá naquela terra significava aquele que brilha no escuro pois parece que tem uma lâmpada no nariz.
Como o Nicolau não tinha possibilidade de visitar todas as casas ia atirando as prendas pelas chaminés, o que no início não deu muito resultado pois queimavam todas, o que o obrigou a espreitar primeiro, até que um dia escorregou e só parou com o rabito nas brasas, deixou cair as prendas e saiu logo a voar por onde tinha vindo gritando: AU! AU! AU! O que muita gente pensou ser uma risada eram os gritos de dor do pobre coitado de rabo queimado. E com a evolução do folclore passou a ser conhecido pelo célebre HO! HO! HO! que ele mais tarde começou de facto a usar.
A avó entretanto teve que desistir dessas lides pois nessa altura do ano havia muito crime e alguém tinha que o combater. O Nico, lá teve que contratar veados a sério, que mais tarde descobriu serem renas, com um novo Rudolph a quem ele atarraxou uma lâmpada no nariz para passar pela avozinha e com sucesso, pois diziam mesmo que a fama só lhe fizera bem, estando agora bem mais bonito.
O Nicolau como sinal de agradecimento por tudo o que a avozinha fizera por ele ao longo dos anos, passava sempre em primeiro pela casa dela, e assim nós pudemos conhecê-lo em pessoa e receber os presentes que ele trazia em mão.
Outros que também apareciam por lá eram alguns fantasmas, mais propriamente o do passado, presente e futuro, mas não levavam nada, e como tal também não tinham direito ao manjar.
Para terminar, só faltava falarmos das canções tipo Dust in the Wind que a avó cantava sempre acompanhada da sua guitarra folk no colo, bem como outras canções típicas, tais como, Mr. Tambourine Man, e um clássico favorito que ela adorava que era o Starway to Heaven, que nós acompanhávamos palavra por palavra e tique por tique enquanto dávamos umas cachimbadas e víamos os elefantes cor-de-rosa e tartarugas ninja.
Era tudo mágico nessa altura, até quando a Pamela saltava do bolo, parecia ser sempre a primeira vez…
- Pois é Paulo, eram assim as nossas ceias à mesa do Natal. A avó acabava sempre com uns valentes arrotos e uns bons fogos de artifício, para festejar. Era o resultado da mistura das couves com o bacalhau. A avó chamava-lhe de Calhau. “Vamos lá então fumar um calhau…”, dizia ela mortinha por nos surpreender. E ficávamos mesmo sem palavras, tal a capacidade de retenção de ar rarefeito que avó conseguia libertar pela casa. Era de ficar com os cabelos no pé, tal a potência do calhau. Ao menos a lareira nunca se apagava. O mesmo não se podia dizer dos cortinados de casa. Ardiam como tochas cheias de gasolina. Que espectáculo! (suspiro de saudades).
- Por falar em espectáculo, lembras-te de quando o Berto pegou fogo à Árvore de Natal?
- Então não me lembro? Fez birra que não queria o Bacalhau, mas foi daí que veio a ideia de iluminar as árvores com luzinhas. Ah bons tempos…
- Pois, quando se usavam as peúgas e as cuecas com os selos como enfeites, não eram Filipe? Filipe?!?
- zzzzzzzzzzzzZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZzzzz (assobio), RRRONC…
- Parece que continua na sorna…
- Deixa lá Jaime, com certeza está a sonhar com esses tempos, e que belos Natais eram… Ai, Ai…, antes de chegarem os extra-terrestres e aumentarem os impostos e a gasolina, que belos tempos eram, já dizia a avozinha…

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